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Há meio século, um filme levou nossas almas

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Imagine que você está em 1963. Você decide ir ao cinema e escolhe um filme brasileiro com um nome chamativo.

Nosso cinema, na época, vivia de comédias e dramas históricos. Ainda não existia o Cinema Novo ou o Cinema Marginal da Boca do Lixo.

Você paga ingresso, entra na sala lotada, e escolhe um lugar.

 

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A primeira imagem é a de uma bruxa, amaldiçoando os espectadores:

“Se você tem medo de ruas escuras… de andar por cemitérios… então vá embora! Não assista a esse filme!”

Logo depois, surge Josefel Zanatas, um coveiro popularmente conhecido por Zé do Caixão. Sujeito estranho, de capa preta, cartola, e unhas longas.

Pelos 85 minutos seguintes, Zé barbariza: mata o melhor amigo e depois estupra sua mulher; corta os dedos de um coitado com uma garrafa; castiga outro com uma coroa de espinhos retirada de uma imagem de Jesus.

Pìor: Zé blasfema, zomba da religião, come carne na Sexta-Feira Santa enquanto a procissão passa na janela de sua casa. Desafia Deus a enfrentá-lo.

Não dá nem para imaginar o tipo de reação que “À Meia-Noite Levarei Tua Alma” teve em 1963.

Quem presenciou as exibições diz que muita gente queria matar o diretor, José Mojica Marins.

Por outro lado, muita gente gostou. O filme ficou mais de um ano em cartaz em São Paulo.

Se você ainda não viu “À Meia-Noite Levarei Tua Alma”, recomendo. Existe em DVD por aí e passa de vez em quando no Canal Brasil. É o maior exemplo de que é possível fazer um filme popular, baratíssimo e artisticamente relevante.

“À Meia-Noite” é um conto de fadas brejeiro com visual expressionista e um anti-herói nietzschiano como o cinema nunca viu.

É cinema caseiro, feito de improviso e em condições precárias, filmado em 13 dias num estúdio minúsculo em Santa Cecília, São Paulo,com um elenco quase todo de amadores.

Mas quem assiste ao filme sem preconceitos consegue enxergar o talento por trás das dificuldades de produção.

A fotografia e a montagem são primorosas. O roteiro é dinâmico e não deixa a ação diminuir por um minuto. Os cenários, embora paupérrimos, com suas lápides de papelão, dão ao filme um clima gótico-trash-suburbano de arrepiar.

E os efeitos especiais assustam pelo inusitado: para fazer um relâmpago que atinge uma árvore, Mojica desenhou diretamente no negativo; os fantasmas são pessoas filmadas em positivo.

Mojica não usava som direto e dirigia os atores durante as cenas. Isso era necessário para controlar um elenco formado por amadores e alunos de sua escolinha de cinema.

Há uma cena, em especial, que merece ser vista e revista: o primoroso plano-sequência em que Zé do Caixão desafia os mortos a voltar do Além e levar sua alma. É um dos grandes momentos do cinema brasileiro.

Hoje, José Mojica Marins sofre uma maldição: é muito mais conhecido que seus filmes. Todo mundo sabe quem é Zé do Caixão, mas poucos assistiram aos filmes. Está na hora de mudar isso.


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